Em 2014, com algum receio, tomei a decisão de ir morar para Inglaterra. Desde pequena que implicava com o inglês, ficava nervosa de dizer um simples “Yes” e decidi que nada melhor havia a fazer do que enfrentar o meu medo. Fui morar para Cambridge no início de 2015. Era farmacêutica e fui trabalhar em Garantia da Qualidade, numa fábrica de medicamentos estéreis. Estava numa empresa conceituada, a fazer o que gostava, a criar a minha carreira. Tinha criado uma rede de amigos que me fazia sentir confortável e via-me ali por longos anos. Em 2017, ao regressar a casa de uma viagem rápida a Portugal, já no aeroporto em Stansted, perdi a carteira. Deixei-a no banco onde estava sentada quando o comboio abriu as portas. Só dei pela falta dela já quase em Cambridge e nem voltando ao aeroporto, nem procurando na polícia, nem indo ao consulado, houve feliz reencontro. Tinha marcado uma semana de férias com amigos em Cabo Verde para a semana seguinte mas, sem passaporte, fiquei em terra. Assumi a perda da viagem, mas decidi ir para Portugal para tratar de novos documentos.
Não sou de esoterismos, mas ainda hoje estou grata às coincidências. Foi durante esta estadia que o meu pai descobriu que tinha cancro do pulmão em estado avançado. E, felizmente, eu estava em casa, com todos. Foi a primeira vez que me senti sem chão – de uma maneira que acho que nem a melhor das empatias imagina a sensação. Só sabemos o que é quando o sentimos. Chorava só de pensar em voltar para Inglaterra. Não podia deixá-los nesta altura.
Todos perceberam, mas aconselharam-me a adiar decisões definitivas. Ouvi-os, e apesar de já ter o assunto muito resolvido na minha cabeça, delineei um plano semi-conservador: regressei a Cambridge, pedi licença sem vencimento por 6 meses, e com a ajuda dos meus amigos em Cambridge coloquei toda a minha mobília num contentor alugado. Muitos mostraram-se apreensivos com este abandono da carreira mas, na minha cabeça, tudo se relativizou. Precisava de estar perto dos meus pais, precisavam de mim.
Foi duro. Quando voltei para Portugal tinha uma to do list infindável e assustadora. Vinha determinada e focada em tomar conta da parte burocrática da paragem profissional abrupta do meu pai, permitindo assim que a minha mãe pudesse estar o mais liberta possível para acompanhá-lo. Pus mãos à obra: tratei dos assuntos legais, das seguradoras, das baixas médicas e tudo o que emergiu.
O meu pai, típico da sua personalidade e para se proteger, bloqueou qualquer contacto com colegas e amigos não íntimos. Coloquei-me na estrutura do consultório que era dele, apresentei-me a quem foi preciso, geri o que apareceu. Habituei-me a tratar do assunto da doença do meu pai como se fosse uma empreitada: uma questão legal, uma questão de números. Quando as pessoas olhavam para mim com ar de “mas tu também és filha” respondia “quero tratar de tudo o mais depressa possível para poder ficar triste quando for a altura”. Tinham-me explicado que há muito tempo que não viam uma PET com tantas metástases, e que o desfecho poderia ser estupidamente rápido. Racionalizei e durante todo o processo acompanhei-me de apoio psicológico essencial para conseguir limpar e organizar a cabeça. Chorei quando tive de chorar e foquei-me no que tinha que fazer. O meu pai ajudou-me muito a lidar com o dia-a-dia durante o ano que passámos juntos depois do diagnóstico. Consegui viver a morte do meu pai com a serenidade de ter ajudado a fazer desse ano o “melhor possível”. A expressão “o melhor possível” passou a ser o meu lema de vida. Sinto que mudei. Talvez agora já ache que sou adulta e não deixo de estar orgulhosa do que consegui fazer, sinto que consegui ajudar a minha família num momento crucial e tudo o resto se encaixou. A vida acaba sempre por se encaixar. Acredito que a vida tem de ser vivida, de facto, o melhor possível, sempre acompanhada de responsabilidade e um tanto igual de ligeireza. Pode sempre ser melhor, mas também pode ser muito pior.
Não tenho uma história de mudança de carreira pela vontade de mudar. Considero que a vida me apresentou uma mudança repentina, e a possibilidade de ajudar. Mudei e lidei com tudo da melhor forma que soube. Foram estas mudanças que me trouxeram até aqui, o que faz com que apesar de tudo seja grata. O presente é bom, com saudades quotidianas do meu pai, mas feliz. Continuo a gerir o consultório. Não era a minha área de formação mas aprendi, pus mãos à obra, adaptei-me. Fiz uma pós graduação em gestão para não gestores no ISCTE. Hoje gosto do que faço.
Seis meses depois de ter regressado a Portugal reencontrei um colega de turma do secundário, apaixonei-me e hoje tenho uma família linda. Criámos uma empresa juntos (um estúdio de PT com electroestimulação em Coimbra) que continuo a gerir em conjunto com o consultório em Leiria. Tivemos o nosso primeiro filho, casámos e vamos a caminho do segundo. Acertei na ordem dos eventos, funcionou.
Gosto de gerir a vida e de a ter sob controlo, mas lembro-me muitas vezes de uma expressão que a minha avó me dizia “Que Deus nosso Senhor não nos dê aquilo que podemos aguentar, porque aguentar, aguentamos tudo”.
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